pokerstars - Como tratar denúncias de violência de gênero sem condenar antecipadamente?

"Vocês da imprensa já condenaram o cara", é o que escuto quando surge uma nova denúncia de violência de gênero no esporte.
Algumas pessoas têm essa impressão porque entendem casos desse tipo como se fossem outros casos policiais - e não são.
Há especificidades nas acusações de violência de gênero que precisam ser respeitadas.
Primeiro passo é focar nos fatos e indícios. Em seguida, oferecer o contexto.
O que temos de fatos e indícios até aqui envolvendo, por exemplo, Kleiton Lima, ex-treinador do time feminino do Santos?
Temos a denúncia.
Ele foi acusado por várias jogadoras do Santos de ter praticado crimes de assédio moral, psicológico e sexual. Fato.
O que temos até aqui como material probatório: cartas das jogadoras detalhando episódios de violência de gênero. Depoimentos fortes, contundentes, perturbadores.
Temos também a negação de Lima: diz que não fez e que se sente revoltado com as denúncias.
Tudo isso precisa ser dito quando tratamos do assunto. É o que sabemos até aqui: denúncia, indícios, negativa.
Agora vamos ao contexto porque não se faz jornalismo sem ele: contexto precisa ser oferecido sempre que uma denúncia é feita porque existimos dentro de uma sociedade que, diária e historicamente, é violenta contra mulheres.
Crimes de violência de gênero têm números de uma guerra no Brasil (e no mundo, mas fiquemos por aqui). Vamos a alguns desses números:
Metade da população feminina do Brasil afirma ter sofrido algum tipo de assédio em 2022. Sete milhões relatam ter sido abordadas de forma agressiva em festas. Oito milhões assediadas fisicamente no transporte público. Dezoito milhões passaram por cantadas desrespeitosas no ambiente de trabalho. Um estupro a cada dez minutos (em números subnotificados em até nove vezes). Pelo menos um feminicídio por dia.
O relatório do Fórum de Segurança Pública é bem mais extenso e detalhado e escancara números assombrosos.
Dados que revelem o cenário do que é ser mulher no Brasil devem ser contextualizados sempre que uma nova denúncia é feita.
Falsas denúncias são raras, mas existem.
Sobre as falsas denúncias, o livro "O Direito ao Sexo", de Amia Srinivasan, explica que quando ocorrem elas têm características peculiares.
Normalmente não são feitas por mulheres, mas por homens que acusam outros homens de terem praticado violência de gênero.
Nesses casos, os homens falsamente acusados são pessoas negras e os falsos acusadores, segundo a pesquisadora, normalmente são policiais.
Esses recortes precisam ser oferecidos para o melhor entendimento desse tipo de violência.
Por que falsas acusações são raras?
Porque é bastante improvável que uma mulher submeta-se a passar pela via sacra que se segue a uma denúncia em nome de uma mentira, de uma vaidade, de destruir a vida de alguém.
Normalmente há apenas uma vida destruída: a de quem acusa. Isso precisa ser pontuado quando formos falar das novas denúncias.
Ao fazer a denúncia, a mulher é automaticamente julgada pela sociedade: ela quer a grana do cara, quer aparecer, mas ela estava com essa saia?, essa não presta e isso a gente vê nas redes sociais dela, olha quantas fotos de biquini. Em 1990 ela fez topless, sabia? É uma vagabunda, olha a maquiagem dela!
A vida da mulher que acusa é passada a limpo, vasculhada, espionada. Muito mais do que a do acusado.
Depressões são comuns, melancolia mais ainda, suicídios já foram relatados e demissões não estão descartadas.
A escritora Rebecca Solnit, que pesquisa e trata fartamente do tema, estima que menos de 5% sejam acusações falsas.
Tudo isso precisa ser colocado em perspectiva quando uma nova denúncia é feita.
Muitos casos são arquivados por falta de provas (como aconteceu com o jogador Roger Bambu) mesmo diante de depoimentos dilacerantes da mulher que acusa.
Aqui precisamos dizer que, na letra da lei, a palavra da mulher tem mais peso do que a do homem em casos de violência de gênero mesmo que não haja um conjunto probatório contundente (vídeo, fotos, troca de mensagens, depoimentos). Isso porque é raro que existam testemunhas em casos desse tipo.
Mas, infelizmente, na prática a teoria é outra e quando só temos a palavra da mulher contra a negação de um homem o caso tende a ser arquivado. Embora haja recortes necessários:
Se uma mulher branca e rica acusa um homem negro e pobre de violência de gênero, esse homem tem pouca chance de escapar da pena. Se uma mulher negra e pobre acusa um homem branco e rico o cenário muda e é raríssimo que o acusado seja condenado. Aliás, homens poderosos dificilmente são condenados. Se uma trabalhadora sexual acusa um cliente de estupro, a sociedade está preparada para acreditar que é do jogo. E não é.
Portanto, é importante ressaltar que aqueles que dizem coisas como "ela deu a versão dela, ele deu a dele e agora a justiça decidirá" estão esvaziando de contexto o caso - e isso não é honesto nem íntegro.
A mesma sociedade que se organiza para acusar a vítima é a que protege o acusado. "Não queremos acabar com a carreira dele", disse o advogado de Gabriela Cavallin, que acusa Antony.
Seria importante pontuar aqui que, no caso de a justiça condenar o jogador, ele mesmo terá acabando com a própria carreira.
Dizer uma coisa como essa é estar infectado pela ideia de disparidade entre quem acusa e quem se defende. E trata-se do advogado de quem acusou, o que piora muito as coisas.
No caso de Antony, que nega as agressões mas confessou que havia ofensas, seria importante pontuar que a ofensa é o começo de tudo. A violência começa na fala, não com um murro. O tapa vem sempre depois da ameaça. É o verbo que abre a porta do inferno e por isso ele é considerado um crime.
Esse contexto é importante e precisa ser oferecido.
Sobre acusados sempre negarem que tenham feito qualquer coisa é importante dizer que é direito de qualquer um negar mesmo diante de vídeos, fotos, depoimentos.
Seguir negando pode não parecer decente ou ético quando o conjunto probatório é avassalador, mas é perfeitamente legal. Eu não sei de caso no qual o acusado tenha dito: bati mesmo. Amassei a cara dela de porrada. Negar é a regra.
É função do sistema legal investigar, processar e condenar ou absolver.
É dessa forma que precisamos falar das denúncias.
Condenar por antecipação é tão lamentável quanto deixar de oferecer contexto ou de ressaltar provas e indícios.
A epidemia de denúncias não revela que agora somos mais abusadas do que antes. Revela que o movimento feminista está criando ambiente para que cada vez mais mulheres tenham coragem de denunciar e de serem amparadas nessa jornada tão violenta que existe entre a denúncia e o veredito.
Violência de gênero é uma estrutura de poder, é o que mantem mulheres em seus lugares e não se restringe a estupros, murros na cara, tiros no peito.
Passa por forçar um beijo na balada, por tirar a camisinha na transa, por fingir que não escutou ela falar "não", por dizer "com essa roupa você não vai" ou "se olhar de novo pra esse cara eu te mato", por vistoriar as redes sociais dela, por escolher os amigos.
No limite, é também dizer que ela não vai pedir sobremesa porque deu uma engordada, que acha a irmã mais bonita, que não quer transar porque ela ficou desleixada.
Violência de gênero é tratar mulher como coisa.
Homens são ensinados que mulher é objeto e que há mulher pra casar e mulher para trepar. Só esses dois tipos. Santas e putas. Mulher passa a ser propriedade e a verdade é que só somos donos daquilo que podemos destruir. Se eu não posso destruir, então não é meu.
Como mudar esse cenário?
Não será via sistema penal, embora seja importante punir. Vamos mudar pela educação.
Quando clubes, federações, confederações e torcidas organizadas participarem de cursos e palestras sobre o tema. Quando o Estado intervir para obrigar que aulas sobre feminismo e educação feminista sejam dadas desde a base da sociedade, para meninos e meninas, homens e mulheres.
Se prender fosse a solução, o Brasil, com uma população carcerária de quase um milhão de pessoas, seria o lugar mais seguro do mundo.
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